Hoje eu acordei de ressaca. Liguei moribundamente a TV e lá estava ele, lindo e tentador. Todo prata. Com um milhão de acessórios (vendidos separadamente, claro). Euforicamente comecei a anotar os números! “Eles dividem de tantas vezes, nem é caro”, pensei. E me imaginei, toda charmosa, na cozinha com ele.
Eu.
Que odeio cozinha.
Queria um Juicer Valita e descobri que eu precisava muito dele. Queria pra poder fazer mais de 200 tipos de suco. Não que eu re-al-men-te vá fazê-lo mas só pra ter a possibilidade. Só pra dizer pra todo mundo que Eu POSSO fazer sucos estranhos de beterraba com abacaxi com casca. Isso sempre acontece! Há um tempo eu queria um Grill George Foreman só pra poder esquentar os pãezinhos naquela estufa super chique de esquentar pãezinhos! Mesmo que eu não goste do pão esquentadinho, eu só queria ter aquela estufa. Não tenho uma explicação lógica pra essa minha compulsão por coisas vendidas na polishop, mas aposto que, secretamente, todo mundo quer aquelas coisas também.
E isso me fez pensar na quantidade de coisas inúteis que tenho na vida só pra dizer que tenho. Por uns tempos tive namorado, por outros, depressão. Já tive sapatos, vergonha, cd do Chico, remorso, roupa de marca, empatia... só pra dizer que tinha. E na verdade, às vezes, eu nem tinha.
O que me deixa chateada comigo mesma é que todas essas coisas são culturais; e dizem de você. Para parecer culto, um livro do kant ao lado da cama, ou aquele cd antigo do Chico que ninguém conhece. Para parecer ingênua, timidez. Para parecer sexy, sapatos desconfortáveis e saias curtas que te enlouquecem pra se sentar, andar e abaixar. Para parecer boa, remorso. Para parecer doce, animais de estimação. Para parecer simpática, empatia. E assim vão se construindo os 1 milhão de estereótipos que tenho em mente para parecer coisas que na verdade eu nem sou... só gostaria de parecer porque isso é valorizado pelos outros; e eu gosto dos outros e quero que gostem de mim. Eu nem gosto muito do kant e num sou nem um pouco tímida, nem ingênua. Mas já fiz isso tantas vezes que parece natural. Aliás quando eu digo alguma coisa fora do permitido sou considerada boca suja, safada, medíocre; mesmo que todos ali estivessem pensando a mesma coisa!! Pôxa! Tava TODO MUNDO pensando! Eu só disse! E isso me torna extremamente SUBVERSIVA; o que nem sempre é bom, afinal de contas eu sou uma menina e tenho que me portar como tal: “Sentar de pernas cruzadas, usar muitas saias, comer com talheres, ser como todas as mulheres...” fúteis. Isso é tão arquétipo pra mim e me fez pensar no quanto tenho sido superficial; assim, do latim superficiale: “pouco profundo, pouco sólido, sem descer a minúcias”. Do quanto tenho sido leviana, vivendo de aparências. Mas como ser profunda, sólida, minuciosa numa cultura em que o importante é ter seios fartos e uma bunda dura?
Não sou puritana, odeio sapatos, não tenho paciência pra terminar meia página do Kant, não sou tímida. nem um pouco ingênua, e, às vezes, não tenho remorso! É ! Eu Sou má, safada, leiga, sem modos.. Hoje, sou o que quiserem dizer de mim porque eu escolhi admitir a minha pequenez e contar pra todo mundo que adoro uma boa cerveja gelada e novela, como pizza com a mão, sento de perna aberta, me divirto comendo cachorro quente de madrugada sentada no meio fio, falo sem pensar, adoro um bom sexo e já tenho idade suficiente pra comprar um juicer valita! Mesmo que eu não vá fazer tantos sucos.
Postado por: Gabi Moreira
2 comentários:
Poema em linha reta
Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Amiga, você foi sensacional!!!!
Tenho certeza que esse texto ecoou na alma de muitas mulheres oprimidas e compulsívas, como nós.
Bjos,
Parabéns pelo texto. Está muito bem escrito.
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