segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Cotidiano do mundo

Lágrimas escorrem pelo extremo de um olho. Saltam, fugindo de seus devidos canais, à medida que a vida se transforma em música e a música em vida; melancólica. Horas e minutos tornam-se tempo decorrido.
Uma jovem grita histericamente. Orgasmos múltiplos a invadem. O gozo, gosto da vida, devolve a ela a pureza e a sensibilidade das crianças. Sorri satisfeita, nenhum sentimento de culpa sobrepõe àquele súbito de prazer. Ela pensa, que talvez seja essa umas das únicas formas de encontrar o que chamam de Deus. E caminha, seus cabelos espalhados pela brisa mansa, por um mundo que compartilha com todas as suas intimidades refletidas, algumas conhecidas, nem todas exploradas.
Ofegante, uma mulher brada. Seu chamado ecoa pelos tetos de um hospital público e um médico atônito distribui funções a uma equipe desorganizada. Ela geme, resfolega, suspira. Tenta esboçar um sorriso de dor. De dentro de seu ventre um pequeno ser, banhado em um líquido viscoso, mostra o seu pequenino rosto a um mundo que não sabia existir. E chora indefinidamente.
Uma rosa, um sorriso; beijam-se. No banco de uma praça mal iluminada o amor floresce. É um germinar digno de apreciação, o que resulta em encantadoras reminiscências. Há espaço para o perdão, o entendimento e o desequilíbrio, que estrutura os corpos e remonta sorrisos: amor intransitivo.
Olhos famintos, sedentos de justiça e pão, rogam por um pouco de sensibilidade. Os que cruzam apressadamente a avenida não têm tempo para vasculhar os bolsos a procura de uma ou duas moedas para um indigente, que move os lábios num rezar silencioso de quem não se alimentou o dia todo.
Chocam-se. Um bêbado dirigia imprudentemente, um pai de família retornava de uma visita à amante. Ouve-se o estrondo, a vida acaba para um deles. E qual merece mais algum tempo nessa dimensão? Se a justiça se responsabilizasse pela vida, o que fosse bom seria poupado.
Uma garota pálida observa o que transcorre abaixo de sua janela, no décimo primeiro andar. Pensa. Sorri. Sobrevoa sonhos e ilusões; pequenas realidades. Ninguém sabe o que a faz estar ali às seis horas no entardecer de uma quinta-feira improdutiva. Ela continua, visualiza possibilidades, hipóteses, remói constantes arrependimentos. Sente o ar batendo na vidraça, um gosto de fuligem na boca, os cabelos molhados pingando no parapeito da janela. Observa as nuvens dando as mãos, as ondas que se quebram no mar ao longe, os carros que trafegam, a multidão que se aglomera. Ouve o buzinar dos automóveis, o rumor das conversas que se misturam e chegam a um décimo primeiro andar como verdadeira cacofonia. Ouve a vida urbana que se desenvolve abaixo de seus pés e ofuscam o canto dos pássaros. Entre um edifício e outro, aprecia o fim de tarde cor violeta que se mistura a um caramelo acinzentado. Abandona a janela, a existência morna das coisas, a distância entre a intenção e o procedimento, a fresta que olha o mundo. E retorna, sem gosto, ao grosso da vida.