quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Lembrete

"PELA TARDE DE OUTONO onde o verão
Deixou rastos ainda, e a escuridão
É de fogo já baço no horizonte -
Por esta tarde onde indecisamente
O vento vago paira como insonte
De sua vinda morna e [ * ],
..."

Fernando Pessoa
5-10-1916


Pedaço de papel rasgado em uma página marcada de poesia de um livro que há muito era fechado. Recado no papel, anotação de contas, dívidas, lembretes: vontade de voltar e fazer tudo que, então, eu não podia esquecer. Vontade de lembrar de tudo que não posso esquecer. Ou do que não quero.
A página marcada era um pedaço de Fernando Pessoa, de um livro de poemas inacabados, coisa que ele deixou por fazer. A incidência me deixou análoga a Pessoa, sua obra por fazer, coisa antiga dobrada em silêncio, pedaço passado em silêncio. Meu cotidiano passado sem ver.
Pessoa era poeta e tinha em tudo seus sentidos.
Também eu tinha, no pedaço de papel, um pouco de mim em pessoa, um tanto de sentimentos que já tivera sentido. Tanto de coisa para não esquecer, qualquer dívida, recado e um rabisco que saiu de mim um dia, de um sentido que não volta. De uma sinceridade só de quem anota sem olhar, de quem rabisca sem sentido. Nostalgia de algo corriqueiro, vontade de sentir pedaço da gente durante o dia que passa, e vai e a gente esquece. Que mesmo se anota, vai, esquece. Saudade de sentir esses pedaços que inteiram algo mais que a gente lembra (e é tão pouco). Vontade de sentir algum se escrever agora. De rabisco sincero sem notar, coisa que fica por fazer. Vontade de lembrar de mim sem precisar agenda.
Lembrete por ser lido num pedaço de papel.
Por mim em pessoa no Pessoa inacabado.


Laís de Oliveira


[ * ] : Espaço em branco deixado pelo autor