domingo, 21 de dezembro de 2008

Poema (Memória)

Temo esquecer seus olhos

Como beijos

Se digerem, engolidos pela boca.

Temo perder seus braços

Como esfriam os nervos, sem o esquentar do abraço.


Temo perder seu riso

Como os passos que não ecoam mais dentro do quarto.

Temo perder meus passos

Em que falte

Seu desnorteio, o norte que preciso

Nas suas noites. Sua valsa louca,

Seu desatino, esse meu desespero.

Temo esquecer o dia em que me veio

Você e eu me esqueci dos planos

Fora da sua vida

E me embalei

No cambaleio leve dos seus passos.

Temo


Esquecer que me arrastei por seus passos

Que me ofereci, nua, aos seus braços

Que enlouqueci no vício por seus risos.

Agora, temo porque a noite passa

Que o temor se alivia com cachaça

E te esquecer dói tanto, que é preciso.


Belo Horizonte, 20 de dezembro de 2008


Laís de Oliveira


[Postagem das Quintas Feiras fazendo hora extra]

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Calendário

"Remember we used to dance"
Stay or Leave, Dave Matthews
No calendário
Os dias são escassos
Para que nos tenhamos
Nossos passos
Estão desajustados e sem ritmo
Estão descompassados.
Houve um dia
Em que dançamos sem pedir, da noite,
Mais que o escuro
E hoje, a noite é rara
Por nossa exigência
Ou nosso descaso
De não saber o que fazer conosco.

Um dia, embora o céu fizesse claro
Eu te esqueci nas nuvens que passaram
Eu te perdi num resto de poesia.

Laís de Oliveira

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Mate Couro



O gosto de mate couro me remetia à infância, quando a gente parava, quente, de brincar, com os rostos vermelhos e as mãos esfoladas de poeira e asfalto. Naquelas goladas, se sentia apenas a satisfação pelo alivío do cansaço não sentido, na correria por brincar cada pedaço de dia. Daí era injustiça com a canseira que trabalhava na gente sem dar efeito e um gasto de Mate Couro, que aliviava a gente sem ter sentido, de canseira... Pra não falar no sol que nos transpirava o rosto e a gente nem, esse suor, sentia, ou então se achava bom, pra ver quem era o mais suado. Criança é, sobretudo, algo sem compromisso.
Laís de Oliveira

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Quase madrugada

A paisagem noturna da cidade parece abrigar luzes mais brilhantes, neste dia após a chuva.
Uma música nostálgica me faz lembrar da falta de você que era um onipresente inverso, quando eu não te conhecia.
Agora ouvi-la me faz ter saudade de te sentir nas coisas, para suprir sua falta em café, sorvete ou teatro e não morrer de vazio.
Agora a noite limpa me remete ao seu olhar que eu já conheço, e no entanto nem sequer sei se está distante, nem se o não estaria, em que estivesse perto, fisicamente.
Sobretudo eu tenho falta de você antes do que era, quando era o verbo e a imagem criada em poesia.
Por fim resta a certeza de que não merece, nenhum inclinado a poeta, conhecer o motivo de sua poesia, pois que sem ele é que esta existe. Que a presença da musa é por demais intensa que se exprime ao vivo, que o poeta desmerece o papel.
Quiçá você fosse quando o meu verso o era e eu não te perdesse para escrever poesia.
Deus me livrasse desta noite limpa, e destas luzes da cidade estreladas sobre o asfalto, e sobretudo desta poesia desvairada que esta falta me inspira.

10/11/2008

Laís de Oliveira

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Soneto aleatório

Seus olhos ‘inda se sossegam, claros
Nos meus, no entanto eu não os tivesse quisto
Lembrar e os escrevi pra esquecer, visto
que a poesia é, do esquecer, o amparo.

E eu quis tranqüilizar-me n’alguns raros
Versos para esquecer-te, no que insisto,
No que não há sucesso , no imprevisto
Desejo meu por seus olhos, avaro.

Que eu me sossegaria se os meus versos
Bastassem pra escrever isto que os cria,
Que me corta, rasga, me beija, existe

Em desnorteio, em meus olhos dispersos
Na minha abstinência de poesia
Pra te lembrar mais puro e eu, mais triste.

Laís de Oliveira

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Para esquecer de esquecer.

Eu não conseguia me mexer. Estava lá, há cerca de uma hora, olhando fixamente pela janela do 13 andar do prédio da graduação. Precisava me mudar, então gastava meu tempo olhando os prédios à minha volta e pensando se algum deles me faria sentir bem, em casa. Depois comecei a prestar atenção nos ônibus que passavam na avenida. É impressionante o poder de visão que minha lente de quase 6 graus me oferece. Também, puderas. Qualquer coisa, menos aula. Aquela mulher me irritava profundamente. Sabe aquele tipo bem feminista que se recusa a usar sutiã, salto ou se depilar? Abomino. Entretanto, meus problemas estariam reduzidos a quase nada se a aula dela fosse interessante. Enfim, a cada prédio que eu observava, a cada ônibus que passava, era mais uma pequena parte da promessa que eu havia feito a mim mesma sendo desfeita. Queria prestar mais atenção às aulas, ser melhor aluna e parar com essa mania de beber dois litros de café e estudar de madrugada um dia antes da prova. Mas desde minha volta eu ando vivido em um estado de dormência que eu apenas desperto quando algo de realmente ruim acontece. A saída repentina do meu apartamento foi uma delas.
Eu não realizara o quanto eu gostava daqui até pensar em sair. 30 dias, o prazo. Não sou de me apegar a lugares, casas, mesmo porque meus pais nunca tiveram moradia fixa, desde criança já devo ter me mudado umas 12 vezes. Mas o dia seguinte da notícia me mostrou algo diferente sobre esse lugar. Acordei, olhei pro ventilador do teto e pensei o quanto eu iria sentir falta de acordar e olhar para ele. Bizarro, principalmente se levar em conta que eu nunca o liguei. Não consigo lidar com qualquer objeto que faça barulho em intervalos fixos, eu fico louca – sabe aqueles relógios de 1,99 que fazem tic tac? Todo lugar que eu vou e tem um desses as pilhas somem misteriosamente. Bem, talvez esse sentimento seja explicado porque aqui foi, de fato, a minha casa desde mudei pra Bh. Não é a primeira, mas é a única que me fez sentir como se eu pertencesse aqui. Além do mais, nada como morar com gente normal, ou quase. (ahh, pro inferno com a hipocrisia, de perto, ninguém é normal.)
Mas o susto passa e a dormência volta. Meus dias têm sido tão ociosos que sinto falta até do desespero da semana de provas finais, quando ficar acordada ao menos fazia algum sentido. Ando assim, a passos tortos e sem rumo, um rosto sem expressão, uma boca sempre calada.
Quem sabe passa, quem sabe...


















(Texto antigo, achei por acaso enquanto jogava coisas inúteis na lixeira. Este foi quase. É apenas pra lembrar daqui, de como gosto..)


Ah, só pra constar, tirando os alarmes de carro e o ônibus verde com o número 33, tudo está no caminho certo agora.
=)

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Psicodelias

"Hike up your skirt a little more
And show the world to me"



Volta agosto e minha vida é como se fechasse em um retrospecto, num dejá vu latente e interminável que me constrangesse a receber o presente como uma memória de passado.


Do sonho da casa das bonecas de bochechas envernizadas e do banheiro dourado: a rua

Certa vez, sonhei com uma rua pequena e velha vista de um dos lados da calçada, do lado de onde havia uma casa cuja entrada era um misto da casa de minha avó em Lavras com uma casa suntuosa, como um castelo, com uma torre vertical e cômodos que eu desconhecia. Na subida da escada em espiral, de metal negro belamente detalhado, havia um piso superior que dava tão só num banheiro pequeno e dourado, mui digno de um rei, ou antes, de sua esposa, uma princesa descrita na delicadeza rósea e áurea das paredes e privada. Na casa de tantos cômodos havia moças belas como princesas e artificiais como marionetes de verniz, de um lustrado avermelhado nas bochechas, tão plástico que pareciam esculpidas, pinceladas em madeira, e que de tão falsas eram estranhamente belas, dos cílios postiços longos e muito pretos sobre olhos intensamente azuis como vidro, aos narizes esculpidamente finos e os lábios muito vermelhos e bochechas brilhantes de rubras (rubras, porque o vermelho não as alcançaria). Na cabeça, um adornado longo e ondulado de ouro ou de carvão muito intenso. No sonho eu não sabia se eram bonecas ou moças que tanto se agravaram na sua beleza que se envernizaram, todas, e se esqueceram de algo mais, além do nome, das vontades e delírios. Eu sei que não me compreendia, se atordoada, se estonteada com a beleza frágil das bonecas, com suas beldades enfurnadas pelos cômodos da casa. Não sabia se admiração ou medo, mas era como sentir-me humana, de pele flácida e inquebrável, e de rosto pálido, como sem tinta. Me sentia, antes de tudo, natural e era como se estivesse ali de visita, chegada de viagem, mas como se alguém me quisesse presa como elas para a vida, talvez o rei do qual o banheiro era digno, e talvez eu me lembre também de seu rosto de marionete adocicada, das bochechas de maçã caramelizada. O tempo que passei naquela casa eu nunca soube, mas algo me prendia como vício, comiseração ou encanto pelo senhor que mantinha as senhoras róseas e douradas, porque eu estivesse lá por um motivo mais e único, que se comprovava pelo fato de eu não ter as bochechas róseas, mas dúvidas. Não sei por que nem por quanto fiquei, até que me senti um dia com os cílios longos e os cabelos volumosamente brilhosos, íntima da escada em espiral que levava ao banheiro superior e acomodada pela proposta do senhor das bochechas róseas. Lembro num desfecho de ver novamente a rua (e no meio tempo entre as princesas e então parecia não ser a primeira vez que eu me colocava entre a rua e a escada do banheiro) e de me despedir daquele senhor sem tristeza, nem cabelos longos ou bochecha rósea, mas com uma nostalgia como por um amor que se sabia inexistente, mas se sentisse. Lembro de pessoas que vieram me esperar como se eu voltasse de um cárcere... e não me lembro de muito mais (mas que deixei outra donzela mais condizente que eu na calçada com aquele rei sem nobreza, feito plebeu ou boneco de cera pelos tempos modernos. Lembro de nostalgia.
Na verdade eu nunca compreendi ou o quis, este sonho, nem entanto me preocupei, e no entanto agora ele me vem com uma aura nostálgica de presságio antigo, como tivesse um lado premonitório desde aquela época. Mas nem o lembro quando sonhei ou o porquê das figuras engraçadas, medievalizadas e românticas, em marionetes envernizadas. A verdade é que nem hoje o compreendo, necessariamente, mas é como se ele fizesse parte da seqüencia de dejá vus que tem me perseguido. Haja significado, haja sentido ou não, certo que vai para uns cinco anos atrás que o sonhei. O que há de presságio é a semelhança de algo que sinto agora e que senti neste sonho, que me fez reconhecê-lo novamente e descrevê-lo na esperança de que me dissesse algo...um sentimento de nostalgia que me faz sentir uma dor de ter abandonado algo que nunca me seria dado e não sei quando o tive em mãos, numa posse fugaz por mera diversão do tempo em saber que o meu futuro o abandonaria, mas no entanto o tive que conhecer para me responsabilizar, sozinha, por abandoná-lo.
Por teimosia, se não houver sentido, eu culpo as circunstâncias.
Sobretudo, não é amor, mas nostalgia.

Laís de Oliveira

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Mês

Saudade de te ter sem te sentir, sem ter sentido, sem saber. Saudade de te ser sem ser lembrada, de saber te ter comigo sem chorar, sem ter sentido. Saudade de te saber antes de tê-lo sentido. Saudade de você como era quando eu me esqueci do rosto dos seus amigos. Quando eu te sabia pouco e só.
Quando eu te conhecia mais que a noite, mais que o álcool, mais que você mesmo.
Vontade de que eu fosse sempre isso e nunca mais pernas abertas sob a almofada para receber o laptop numa madrugada fria.
Antes você estivesse aqui e eu não mais escrevesse.

Saudade te começar comigo.

Laís

(texto das QUINTAS FEIRAS, atrasado)

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Só queria que você soubesse...

Sempre que via as pessoas juntas, se amando, eu pensava que um dia ele ia chegar. Não um príncipe montado num cavalo branco, mas alguém especial que quisesse me doar todo o seu amor e recebê-lo de mim, desta vez, sem reservas.
E onde estará ele? Se puder me ouvir agora... Que chegue logo! Tenho medo de que ele já tenha chegado e eu, com todo o meu orgulho e timidez não o tenha notado ou esteja desprezando-o não por ser impenetrável, mas por não conseguir me aproximar.
Sei que preciso mudar isso em mim, essa paralisia injustificada, mas infelizmente é isso que acontece com os poucos homens que me tiram o controle da situação e, depois de um tempo, de mim mesma.
Não consigo mais prever todos os comportamentos, sinto que nesse momento estou envolvida, de corpo e principalmente de alma, em uma situação, quiçá relacionamento, que não tem começo, não tem meio e não sei se um dia terá fim, já que isso nunca começa para valer.
E sei que perder o controle me desestrutura inteira, me deixa numa tontura irresgatável, um mergulho que prefiro me afogar a ter que voltar à superfície e enfrentar uma situação de desconforto e, pior, descontrole.
Existe alguém... Mas não o conheço por completo, não sei por onde ele anda, o que pensa de mim, o que almeja e o que sente. Não sei nada. E daria muito para descobrir tudo isso e me aproximar dele, mas parece que ele também fica paralisado, ou talvez não se importe comigo.
Um dia, quando nos encontramos e disse estar exausta, ele sugeriu: “Escreva!”
E aqui estou eu... Tentando colocar em palavras o que não sei estar sentindo. Tentando transpor uma confusão de sentimentos que se entrelaçam e voltam a se desfazer, que se encaixam e se desencontram quase que ao mesmo tempo.Você é confuso, é complexo é do jeito que eu gosto... Se tivesse coragem conversaria com você, te pararia no meio da rua e diria tudo que está passando pela minha cabeça, te seguraria pelos braços e faria você desvendar todos os mistérios que aparentemente esconde e, principalmente, faria você me dizer o que realmente pensa e sente por mim. Juro, eu agüento se disser que não sente nada, se disser que não quer se envolver. Eu agüento! Pior, é não saber... Pior é deduzir sem certezas, acreditar sem ver concretamente. Nunca fui boa em abstrações, tampouco em subjetivismos. Só queria que você soubesse, talvez isso facilitasse um pouco as coisas...

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Sem título



Eu gosto de você
qual escrevesse
um verso entre o susto e o riso
como
não esperasse despertar
com sono
a música favorita na rádio.

Eu gosto de você
como encontrasse
num livro velho, um bilhete antigo
como matasse saudade
qual fosse
fazer as compras do mês
e voltasse
com flores entre o arroz e o limpa-vidros

Eu gosto
qual bagunçasse os cabelos
de estrada,
do vento de mato e asfalto
Gosto
como me esquecesse das horas
pela conversa
em tardes sem sentido

Gosto qual visse, fosse, ouvisse, errasse
como tolice, doce, abraço, almoço,
Viagem.
Gosto como se amasse.

Eu gosto de você,
no entrelaço
dos nossos dedos.
Gosto
do que quer que fosse
que envolvesse ter você comigo.

Laís de Oliveira


"Well the stars up in the sky and the leaves in the tree
All the broken bits that make you trip up and the grassy bits inbetween"
Birds, Kate Nash.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

A Praça

Um casal posa maquinalmente fotográfico neste clichê de coqueiro e flores. A praça nunca esteve tão bonita.
Logo uma noiva vai posar, sem graça, suas futuras memórias sugeridas por um fotógrafo que a desconhece. Ao fundo, um relance de bicicleta esquecida no cenário e algumas caras que a noiva desconhece. A praça nunca esteve tão aflita de ser algo além da grama.

Laís de Oliveira

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Fossa

dor de garganta
fome
esse meu ar
de aborrecimento
a dor sem nome
arde feito cachaça
desce insone
nas noites sem motivo
amor se come
de gula - engole , traça -
feito doce.
e se enfastia
como quem não possa.
má-digestão?
música triste, passa...

bebo Jacques Brel feito digestivo
com goles dolorosos
de cachaça.

Laís de Oliveira

"I took my love down to Violet Hill"

terça-feira, 20 de maio de 2008

Sangue e aguardente

"Das brigas que ganhei,
nem um troféu pra casa eu levei
As brigas que eu perdi,
essas sim eu nunca esqueci"
Pato FU


Era como se eu ainda ouvisse as vozes na minha cabeça, você é um rapaz de família, olha lá se isso são jeitos, tenha compostura. Mas na hora nada pareceu adiantar. Eu não sei o que incendiava mais, a cachaça barata que desceu intragável pela garganta, o sol quente fritando meu couro cabeludo, ou a raiva que me subia pelas bochechas e me fazia cerrar os pulsos. Eu sei que não devia, mas tem muita coisa que a gente não deve fazer sabe, mas faz assim mesmo. E no fundo, parece que esse é que sou eu. Comigo é no tapa e no grito. E no pranto, mas esse eu deixo escondido, porque garotos não choram.
E não dá pra dizer o que é pior, as cãibras por todo o corpor, o asfalto quente como inferno me lixando o rosto, ou o gosto amargo na boca, de aguardente, sangue e poeira. E,algum motivo, que está além da minha escassa capacidade de compreensão, me faz crer que ser o perdedor ainda é mais saboroso.



nov 2005- Com os devidos créditos ao Felipe, que me serviu gentilmente, de modelo real. Suprimi os fatos, pois não são dignos de serem relembrados.

sábado, 17 de maio de 2008

Inércia

Poderia repetir as palavras de Cê e dizer que a metrópole anda impedindo meus escritos aqui - o que não deixaria de ser uma verdade - mas não poderia deixar por isso só. Vontade de escrever até tenho tido, mas tudo me parece tão velho e gasto que não acho que vale a pena colacá-las (palavras) aqui. As coisas tem dado certo, o caos aos pouco foi se esvaindo e eu até sinto uma paz que há muito tempo não sentia. O que não muda sou eu. E qualquer coisa que eu escrevesse aqui, por mais que fosse algo novo pra mim, ainda teria aquele cheiro de livro velho, folhas amareladas e milhares de digitais.


As marcas que ficaram não são apenas marcas, se tornaram parte de mim, e nem cirurgia plástica resolve.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Pela ruas da capital

Ontem Lais me cobrou escritos, eu fiquei sem respostas.
Saí pelo centro hoje, buscando inspiração: pela Rua Carijós e seus predinhos ocupados por oticas e relojoeiros;pela Galeria do Ouvidor, e todas suas cores;pela Galeria do Rock, que de rock já quase não tem nada; pela Rodoviária, e suas gentes que chegam e que vão; até parei em frente ao Pirulito na Praça Sete, olhei pro céu e tirei o fone do ouvido para escutar o vai-e-vém frenético da cidade. Mas de nada adiantou. Continuo apática, preferindo as paredes lilás e o silêncio do meu recanto interiorano. A metrópole tem deixado meus neurônios carcomidos. Resultado: paralisia criativa.

Não me venham criticar meus textos, pois, se os aqui escrevo hoje, é pela simples sensação de dever cumprido.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Lua

Pendurei-me na janela
e guardei a lua só pra mim
como um segredo
e mostrei-a murmurando
em seu ouvido
teu segredo
por ser tão somente meu.
E só eu olhei teus olhos
quando ninguém
- e nem eu -
os via.

Uberlândia, 2007

Laís de Oliveira

sábado, 26 de abril de 2008

Palavras.

Há quanto tempo não as escrevo aqui. E há muito tempo não me eram tão poderosas.
Poderia ter mudado toda minha semana com uma frase, melhor, retirando uma frase. Digo isso pra não parecer exagerado, já que na verdade eu poderia ter mudado toda uma vida. E não só a minha.
Foi assustador.
Três palavras mudaram o rumo de quatro pessoas e ecoaram em minha cabeça durante 7 dias. Poderia tê-las abafado, pensei. Entretato, arrpendimento não é algo costumeiro pra mim, mesmo porque eu não posso me arrepender do que sou, já que hora nenhuma conseguiria ter feito diferente. Principalmente quando o diferente é errado.
Cinco minutos me fizeram passar quarenta e duas horas acordada. Duas ligações resolveram minha vida.

E o que mais move meu destino senão números e palavras?






Quem me dera você tivesse ouvidos.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Vaguice

Há coisas que me atrasam a vida irreversivelmente. O suor de dormir à tarde com o sol ardendo atrás dos panos da cortina, ou o de não ter sono quando a noite encarna o dia.
Me ocorre que eu nasci para o pequeno, para achar no rotineiro o traço involuntário de cada dia, o que há de mais desencontrado no que se espera das ruas, gentes e calçadas.
Parece que o que faço bem é adivinhar poesia quando a rua, sem querer, deixa entrever um qualquer que passa e ri sozinho. O pouco me alegra mais do que saber de todos os anseios dos homens de todos os tempos, de todos os códigos que engendraram o que, hoje, fazemos. Gosto de pôr os dedos no que somos e olhar para o que vemos quando a tarde é de sorvete, ou de preguiça.
Contudo, eu perco o hábito de competência e as chances de mercado. Oxalá meu currículo incluísse o como lido bem com o passar da tarde e a montagem do que será a noite: focos amarelados pelas ruas, mesa no passeio, gente sem mais que braços, olhos, dedos.
No entanto eu sei que o pequeno me assusta na extensão deste infinito ao contrário. Tanta grandeza de detalhes que eu temo querer enumerá-los em prosa, fichas, tópicos ou tese.
Quem dera eu não olhasse pro relógio e rabiscasse esse registro tenso por render um pouco.

Laís de Oliveira

terça-feira, 22 de abril de 2008

Amantes falsificados!

Ate parece que e a primeira vez que eu roo todas as unhas, esperando pelo telefone que nao vai tocar. Essa cara de noiva de marinheiro já é minha há muito tempo. E agora eu cansei de esperar, vou tomando conhaque, porque de tanto esperar eu posso me desesperar. Chega de amor barato, aqui em casa já tá cheio de made in china, um amante falsificado seria só mais um bibelô juntando poeira na prateleira. Troquei meu vestido florido, de esperas no porto, por uma calça velha, azul e desbotada, que é de sai por aí, bebendo que é pra não chorar!

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Em contraste


Acabou a luz no meu quarto e eu escrevo contrastante, neste laptop à luz de velas.
Não quero me demorar nestas linhas, que ando mais pra leitura nestes dias e não pretendo cometer um plágio sem querer, nem ao menos soar mais contrastante a algum leitor - na releitura do que eu reescrevo, de ler outra leitora - do que este laptop às velas.
Do meu gato Noir, só vejo os olhos. O resto é amarelo, branco e preto, de contraste.
Te doaria um sonho de Bonfim e algumas noites de cinema e bruma de cidade histórica, para encontrar você no tempo em que eu não era seu passado.

Laís de Oliveira

"

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Hedonista convicta!

A semana foi passando rasteira, sem que eu percebesse. Continuo inoperante. Minhas ideias sao geniais, minha preguiça fenomenal. Mas talvez seja esse o tal do esquilibrio divino. E eu fico aqui, digitando bobagens, com os cadernos do meu lado. Eu deveria estudar filosofia, ou qualquer outra coisa, sair dessa inercia. Talvez assim eu nao tivesse tanto ciume daqueles que sentam nos botecos e conseguem sustentar as mesmas ideias que eu tenho, mas citando um bando de gente famosa. Mas talvez se eu tivesse lido todos esses livros essas idéias não mais brotariam na minha cabeça, quem sabe. Vai ver é isso, como disse a Clarice Lispector: ando com medo de me contaminar com o escrito do outro.
Às vezes até tento me enganar com essas desculpas meia-boca de conservar minha originalidade, ou até a mais escrota delas: de que não tenho tempo. Mas o fato mesmo é que prefiro cultuar Dionísio a Atenas. Talvez seja essa minha natureza, chega até a ser romântico. Nos livros que eu leio nunca vi uma bonne vivante, assim mesmo, no feminino. Acho que foi para isso que eu vim ao mundo. Pra brindar a vida com um bom vinho, pra cultivar os maus costumes, ou, na falta de dinheiro ser discípula de Kerouac. É, porque dessa de intelectual eu cansei. Quero mesmo é o prazer desmedido. E vida longa ao hedonismo!

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Deste outubro

Ele traria as flores de outubro que ela escrevera, há tempos.
O céu de abril, raleado de nuvens afiladas com seu azul fraco, relembraria outubro em chão e flores, de poeira e ornamentos.
Quiçá ele devesse relembrar setembro se evaporando de agosto, que outubro foi, por fim, um mês vazio de constâncias, foi preparo de um novembro que não teve, ou que teve e passou saudoso de ainda ser outubro. Novembro foi, por fim, enevoado em suas dores e eu me perdi em folhas, como o mês em suas nuvens.
Dezembro, eu já me esquecia de outubro. Janeiro, eu já nem era.
Em fevereiro eu confirmei a idade que eu já tinha e, pelo menos, deu saudade de outros sonhos. Foi choro e precisado, quando de abandonar os planos para ver estas montanhas outra vez. E desde então, não tenho tido casa.
Março foi sem quase ser notado. Parece que me apaixonei às noites, pela chuva amarelada com as luzes. Sei que março teve fim já em abril, que sumiu com seu início.
Agora volta outubro, com as cores que deixei há vários meses.

Laís de Oliveira

quinta-feira, 3 de abril de 2008

A Velha e a Moça (ou Prosa de Sete Fases)

Naquela rua se morreria com facilidade. Tantos carros que passavam sem premeditar a ida pelo asfalto, que a travessia era uma aventura de graves imprevistos.
Atravessei sem pressa, para mais admirar a vida.

Eu tenho pena de gastar algumas boas frases com um texto sem sentido. Mas dou-lhe às letras pra que ele se faça... Que alguém nesse mundo tem de ter coragem de ser tão ridículo. Deixe-o ser, meu texto!

Se o mundo é algo novo, eu já o sei de alguns anos. Mas, ainda, gosto de pensar nas ruas como novas candidatas a cenário e paisagem, gosto de pairar meu sono sobre as luzes da cidade e indagar o que há de novo, o que de certo ainda não vi.

Eu tenho a pretensão de saber tudo e admito. Ainda, sei dizer que sei de tudo do que sei. Do que não sei, de fato sei bem nada, mas insisto em inventar.

Sem me contar, eu faço novos planos entre as tardes sem motivo e crio um novo caminhar em toda cria que invento. Minha memória fraca faz com que eu me esqueça do que era ontem e eu sigo, incoerente e sem linhas concisas, descontínua.

Eu choro algumas vezes entre as luas, ponho a culpa nos hormônios. Da mesma forma eu culpo o horóscopo do meu gosto por bobagens. Assim, saio de grandes discussões, que sou passiva e imprecisa. Faço paródias pra não sofrer plágio.
No mais, tenho preguiça de ser algo.

Por fim eu sou confusa e não tenho sentido. Do nada eu me notei com peitos e sentidos com os quais não sei sentir. A culpa não é minha se não tenho me sentido há uns doze anos.
Aí escrevo tonta, que me aguça os sentidos.

Laís de Oliveira

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Palavras bonitas

Agora tá decidido e não tem volta. Eu já tenho o crime perfeito. Vou roubar todas as palavras pra mim, ou melhor, para ele. Vou dar um golpe no país, me tornar ditadora e confiscar todos os dicionários. Em seguida, instalarei uma base em cada biblioteca e livraria do país. Depois serão os livros. Todos os livros, cadernos, folhetins, cartazes, cartas (principalmente as de amor), tudo tudo tudo, será recolhido aos cofres públicos. Não vai restar nem mesmo uma letra, serão todas minhas.

E isso tudo só para dar a ele quantas palavras bonitas que ele quiser.

sábado, 29 de março de 2008

Geriatria

Do nada, ele me disse: Te acho ranzinza.
Virei o rosto devagar, olhei em seus olhos, arqueei levemente minhas grossas e mal feitas sobrancelhas, soltei um "oh" meio mudo e voltei a fazer o que estava fazendo.
Não foi um 'oh' de ironia, desdém, ou surpresa. Foi automático.
Bom, pelo menos serviu pra ele ter certeza.
Então, não satisfeito, ele disse: "Por quê?"
"Coisa de criação", respondi.

Mentira minha. De todo jeito não poderia explicar. Não para ele.
Aliás, não poderia explicar nem a mim mesma. Não sei o que me aconteceu nem quando; não lembro de ter me visto e me sentido diferente, mas sei de uma maneira tão certa e minha que não é como se fosse essência, natural de mim.

Envelheci antes do tempo.

Perdi a conta dos finais de semana que passei em casa, não por falta do que fazer, ou por falta de companhia, mas me faltava ânimo, disposição, energia para sair dessa maldita inércia que assola meus dias.
Poupo-me para o que vale a pena, pensava.
Mas o que afinal vale a pena?
Se a verdade é essa, ando me poupando para o nada.


Ainda sim, hoje não sairei de casa. Pra que? ...




P s: Ontem a menina que mora comigo disse: Você é mesmo caseira hein Bruna?


Respondi: “oh”.

quinta-feira, 27 de março de 2008

Alter-psicoidolatria

"...ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo."
Fernando Pessoa, em "Obra Poética"


Me falta um deus esses dias, nas minhas coisas, nos meus passos. Sinto o oposto da onipresença. Faz tanto que não tenho inspirações sadias ou vontade imensa de fazer qualquer tarefa. A minha escrita se tornou sem graça e as minhas folhas não mais sonham em tornar-se manuscritos de uma grande obra.
Meus dedos têm preguiça e sono, e me contraria o fato de meus olhos estarem cansados de ver e os ouvidos, fartos de ouvir.
Eu já não tenho um deus há muito tempo. E as minhas linhas já se entortaram e eu me sirvo como auto-divindade, no entanto escrevo errado o meu destino, e mal escrito.
Tenho me contentado com clichês e me desculpado ao repeti-los. Ainda, se resta alguma inspiração, eu gasto em defender aos decassílabos que um clichê merece sê-lo e, só por isso, é eterno e válido. No fundo, estou cansada de não fazer novidades.
No fundo, estou no poço e sei viver nele sem pressa.
Ainda, eu desejava ter um deus, que eu rezaria a ele e faria promessas para conseguir me deleitar com esforços e amarguras. Por graça, eu sofreria pelos versos que não tenho escrito. Na triste condição que vivo, não valem esforços que corroam meu prazer lascivo e flácido de virgem. Minha cabeça se cansou de arquitetar poemas e eu definho em imagens vulgares e ríspidas.
Se me fosse dado escolher um deus, eu rezaria a Fernando Pessoa e ofertaria um altar com folhas, tinta e café. Clamaria por um pouco de dor e me faria reconhecer a antiga timidez nas pernas e a pressa nas palavras. Redimiria os males na escrita. Quem sabe eu me esforçasse em suportar o desrespeito e então, ser pura, para assim poder ser natural e, enlouquecida, almejar servir à minha obra para os homens.
Ainda me resta um indício de loucura, se sei que escrever não é normal.
Por súplica, esta noite eu faço prece da Autopsicografia.


Laís de Oliveira


Agradecimentos a C. Melo, pela menção da "escritura".

terça-feira, 25 de março de 2008

No café das tulipas amarelas


"Senti um abraço forte, já não era medo

Era uma coisa sua que ficou em mim, que não tem fim!"


É verão no Brasil, mas hoje fazia frio. Não frio, frio, mas um frio que me lembrou aquele comecinho de setembro. E meu cérebro se confundiu. Eu me perdi de vez nos devaneios tolos que me afligiram a alma nestes últimos seis conturbados meses. Muita dor proscratinada, esperança maldita apunhalando meu peito. Foi por isso que quando eu o vi eu senti uma vontade estranha de correr e dar um abraço caloroso, encostar minha bochecha na bochecha dele e abrir um sorriso solar. Eu queria brincar com a ponta do nariz dele, que eu sabia secretamente que era torta, afinal aprendemos pelo menos isso naquelas palestras, mas esse é um segredo nosso. Por algum motivo estranho, hoje ainda fazia parte daqueles dois meses maravilhosos de quando eu o conheci, e eu quase acreditei que logo a gente se sentaria no café das tulipas amarelas e ia rir um do outro. Hoje eu ainda não tinha enfiado os pés pelas mãos e podia então fazer planos de passar o domingo no parque, que a gente combinou de ir desde que nos conhecemos e nunca fomos (acho que a gente não foi por causa dos quatis). E ele foi passando do outro lado da rua, a mesma rua do café das tulipas amarelas, onde a gente quase deu o primeiro beijo; mas hoje, seis meses depois, ele passou apressado, sem nem me notar. E meu coração sofrendo com tanta paixão anacrônica. Talvez nem fosse o mesmo ele mais, seis meses mudam muito as pessoas, como mudam. Só quem não mudou fui eu. Ou mudei. Meu coração continua preso no passado, meu corpo envelheceu seis meses, mas meu coração ainda espera a continuação daquela noite sem fim.

segunda-feira, 24 de março de 2008

Resquícios

Dividiram-me ao meio
Minhas metades, freneticamente, subdividiram-se.
Regeneraram-se, formando novas células.
Embriões
Falta-lhes um sopro de vida.
Sinto que perdi o elo da minha congruência
Não só falta coesão às minhas palavras, mas também a mim ela carece.
Não há nada
Nem lampejo
E volto aos pedaços de mim, espalhados por entre os vãos dos dissabores, dos sentimentos,
onde a vida passa e transborda, onde a existência não limita o ser.
Há partes que se soltaram,
fuligem que paira junto ao ar
mar de água que evapora
parte do todo, sal do oceano.
Há frações de mim que se perderam no tempo,
nos capítulos da minha vida
na melodia do meu viver.
Há sonhos que se tornaram fumaça cinzenta.
Lembranças me revolvem inteira
Pá que movimenta folhas secas de denso jardim
Sou outono
Folhas titubeantes e secas caem
O vento as espalha pelo mundo afora
Há frações por toda parte
Minha vida é um des (fracionar) incessante
Parte de todo luminoso,
Espelho em partes refletidas.
Encontro resquícios de mim por todos os cantos,
porque tudo o que existe parte de um mesmo grão.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Veneno desejado

De tudo que ficou
Só quero o veneno
Que escorre pelas veias sem destino
Que esparrama pelo sangue lúcido
Que contamina...

De você
Quero o seu veneno impuro
Não quero ficar imune
Não desejo a boa medida
Não aspiro à serenidade dos infelizes...

Da vida
Almejo o mais insano dos venenos
Quero o que me faça sentir viva
Quero o que me arraste à cegueira
Quero o hiperbólico...

De mim mesma
Quero buscar meu próprio veneno
Escondido pelos devaneios suprimidos
Escondido pelo inexplorado
Escondido pelos demônios que inundam minha alma...

De todas as coisas
Só quero o veneno que avassala
E que dá sentido ao que não tem nenhum.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Seu Poema sem nome



Naquela noite ela sonhou com ele
e com palavras que não tinha dito
viu ele amarelar-se em postes
Ele correr alucinado
veio vê-la
E veio completar frases não feitas
veio lhe responder
bocas de álcool
e sono
veio declarar-se insone
e dela
que naquela noite o teve.

Naquela noite ela sonhou estrelas
que se partiam como as palavras
Se repetiam
rimas alternadas
se escreviam como ela o fazia em segredo
Naquela noite ela teve um filho
com ele
que as estrelas nomearam
sem nome
e o filho esperneava postes e chuva
sob poucas estrelas
que ele rimava com as pernas.

Naquela noite ela pariu um filho
só dele
e terminou por concebê-lo.

Laís de Oliveira

terça-feira, 11 de março de 2008

Grito

E se tivesse arriscado o tudo pelo nada, o certo pelo incerto, estaria agora removendo angústias e arrependimentos? E se tivesse segurado firme na incerteza e seguido com ela até o que não saberia ser começo ou fim? E se pudesse ter a confiança de que fez tudo como clamou a falta de discernimento e a insensatez, estaria nesse instante sentada na varanda se drogando? E se tivesse se deixado viver por apenas um segundo e escolhido o que a Voz dizia- e sabia- ser seu mais intenso e verdadeiro desejo? Ela sabia o que queria, mesmo repetindo freneticamente que não. Queria se convencer. Queria esconder. Tinha medo...
Medo. Medo de si mesma. Medo de sentir o que não podia, o que sua consciência de animal domesticado sinalizava ser imoral. Queria viver sem renúncia e resignação, mas sabia que perderia o mundo, apesar de poder ganhá-lo numa outra interpretação. Tinha medo de se tornar inteira. Medo de não conseguir retornar ao casulo que a impedia de rasgá-lo com suas asas já fabricadas. Tinha medo de gostar de não ser o que sempre havia sido. Medo de se libertar e não suportar lacunas que estariam sempre vazias.
Poderia ter evitado o sofrimento? Poderia ter escolhido viver. Poderia ter optado pela fortaleza e abdicado da fraqueza de quem respira. Poderia não ter pensado duas vezes e agido como quem sente, e não pondera. Poderia ter arrancado os tijolos que já colocara em sua vida e os aproveitado para reconstruir-se. Poderia ter usado todos os seus projetos de arquiteta que é para uma revisão de si mesma.
Ela escolheu. E não pode negar. Drogar-se é uma forma de punição. Aliviar-se e angustiar-se. Matar a si lentamente, sem pressa, sem vontade, sem espetáculos. Sua última saída? Deixaria todas as vidas que de alguma forma também a pertencem. Estaria fugindo do que não pode enfrentar? Sempre soubera desse desfecho. Poderia agora se arrepender e renunciar à escolha que já fez? Protesto contra si mesma. Adiantaria? Ela divide-se sem partes que pedem como indivíduos singulares que não são.
Sente o líquido penetrar por seu corpo e a sensação de inexistir invade a sua alma. Ela sabe que mais um pouco seria um exagero. Mas por hoje ela quer o hiperbólico. Por hoje apenas, ela quer se livrar das amarras internas. E se existir o amanhã, não quer ser nada.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Coerência

"...
Afinal, lidamos, sobretudo, com formas de expressão. Assim, a Língua em vigor se modifica em milhares de bocas, diariamente, e utilizamos a linguagem para expressar uma ciência que, da mesma forma, se modifica constantemente a partir de novas concepções e experiências, o Direito que – acreditamos – evolui a cada dia em nossa vida acadêmica e prática.
..."
Laís de Oliveira, esboço para um editorial.



Vaidade de vaidades, diz o pregador, vaidade de vaidades! Tudo é vaidade.
Que proveito tem o homem, de todo o seu trabalho, que faz debaixo do sol?
Uma geração vai, e outra geração vem; mas a terra para sempre permanece.
Nasce o sol, e o sol se põe, e apressa-se e volta ao seu lugar de onde nasceu.
O vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte; continuamente vai girando o vento, e volta fazendo os seus circuitos.
Todos os rios vão para o mar, e contudo o mar não se enche; ao lugar para onde os rios vão, para ali tornam eles a correr.
Todas as coisas são trabalhosas; o homem não o pode exprimir; os olhos não se fartam de ver, nem os ouvidos se enchem de ouvir.
O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se fará; de modo que nada há de novo debaixo do sol.

Eclesiastes (Cohelet) 1:2,9

terça-feira, 4 de março de 2008

Tem seis dias que eu não saio de casa. Em outros tempos eu criei o mundo e o homem nesse espaço quase hebdomadário. E ainda descansei no sétimo dia. Mas amanhã eu não irei descansar, mesmo porquê eu não criei merda nenhuma nesses dias. Só esse cheiro horrível. Eu devia abrir a janela, mas nem isso. De fora ia vir uma brisa irritante, trazendo consigo o excesso de vida do mundo lá fora. Tem uma creche na porta do meu prédio. Eu não suportaria ouvir vozes de crianças. Eu nem suportaria saber que ainda existem crianças. Então o jeito é agüentar o cheiro. Eu não sei dizer o que fede mais: os cinzeiros transbordam um cheiro inconfundível de nicotina dormida; da cozinha sai uma carniça de comida em estado de putrefação, ou será que quem está apodrecendo sou eu? Não. Eu sei que eu não estou apodrecendo ainda porque eu sinto saindo dos meus poros um perfume inebriante de álcool, deve ser resultado das muitas garrafas que agora eu vejo espalhadas, algumas quebradas, pelo chão. Álcool conserva, por isso eu sei que eu ainda não estou decompondo (mesmo porquê, qual bactéria iria comer minha carne insonssa?). Quando eu era criança meu pai matou um escorpião e colocou num potinho com álcool e eu coloquei em cima da minha prateleira, lá ficou por dias. Hoje eu me sinto como aquele escorpião, dentro dum pote com álcool, morto, como uma punição por ser venenoso, mesmo que eu nunca tenha picado ninguém. Eu deva contar que o bicho mais nocivo é o homem. Mas quem me ouviria? Fui eu quem criou o homem, no sexto dia eu acho. Não lembro mais das aulas de catecismo, mas foi no sexto, se não tiver sido, fica sendo, aposto que os escorpiões eu criei no primeiro dia. O que me consola é saber que amanhã é o sétimo dia. Sete um número cabalístico. Mas me consola por que? Eu vou continuar deitada nesse chão imundo olhando pras paredes mofadas por causa da infiltração e vou continuar pensando nas coisas mais mórbidas e kafkianas que um ser humano poderia pensar. Bom mesmo seria virar uma barata, eu já até tenho a maçã podre do pecado original cravada em minhas costas. Mas amanhã é o sétimo, e eu prometo não sucumbir.

sábado, 1 de março de 2008

Linhas Tênues

Sou feita de sentimentos incompreendidos e não terminados. Talvez seja por isso que eu sinto como se durante toda minha vida eu tivesse andado em círculos. E continuo andando.

Não sei se amei. Aliás, minha idéia de amor sempre andou ao lado de algum tipo de obsessão, necessidade, então não sei dizer. Li uma vez que amar é dar, paixão é tirar. Nunca soube fazer nenhum dos dois.

Não sei se odiei. Dizem que amor e ódio andam juntos, não acredito nisso. Você pode ter raiva e mágoa de alguém que já amou, mas não ódio. Amor pede reciprocidade, confiança pede lealdade, se você não recebe nenhum dos dois pode sentir uma infinidade de coisas, mas não ódio.
Já me odiei algumas vezes. Não estou falando de arrependimento. Me odiei porque sou fraca, não com os outros, mas comigo mesma. Me odiei porque me traio com a freqüência e intensidade que ninguém mais poderia.

Não importa.

Sabe o que eu queria? Me livrar dos conceitos, do inacabado. Começar do zero. Menos ceticismo talvez. Mais ignorância. Procurar menos, saber menos, viver mais. Por que afinal? Ando procurando respostas inúteis.
Por vinte anos tenho vivido sentimentos pela metade.
Não me conheço, nem pretendo.



Nascer de novo seria bom. Reviver pequenas alegrias da infância...




“Sinto-me um barquinho, e a vida um mar terrível.”
(Guimarães Rosa)

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Escolha


Falhas na minha escolha
no meu tempo
buracos no que quero
meus momentos
de tédio - restos de indecisão feita.
minhas paredes de plástico-bolha
prédio de folha, sílica e cimento
penso teus olhos de silêncio
entre imprecisos
registros de pensamentos maduros
- quiçá seguros e sóbrios tormentos,
quiçá a cabeça em ti, calma de fogo
que sabe atrasar passos -
nesse impasse
de escolha que fiz e que no entanto
se demora
folhas sem fim de linhas
e as horas
que passam a estourar plástico-bolha.


Laís de Oliveira

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Da carta ao filho




“Quando seu moço nasceu, meu rebento,
não era o momento dele rebentar
Já foi nascendo com cara de fome
Eu não tinha nem nome pra lhe dar!”







Foi um parto sofrido. Você já nasceu assim sem eira nem beira, maculado com meus pecados, machucando meu corpo e minha alma. Filho inesperado, mãe desesperada. Eu tentei de tudo para me redimir, tricô, aborto, Igreja Universal do Reino de Deus, grupo de mães, álcool e drogas, mas você é forte, a tudo você resiste, rebento meu. Concebi-te na luxuria, gerei-te na vergonha, e te dei a luz no escuro, mas assim mesmo você veio. E trouxe nos pequeninos olhos negros a coragem que eu nunca tive, trouxe a fome ávida dos grandes guerreiros e sugou dos meus seios o leite da vida, da sua vida, só sua. Você lutou por ela antes ainda que viesse ao mundo; me envenenara com a sua sede de vida. Tão pequeno e tão forte, mostrando pra mim toda minha fragilidade e insignificância. Meu pequeno você me mostrou a verdade obvia que eu sozinha eu não poderia ver, eu tive por nove meses a maior dádiva de todas, pela primeira vez eu trouxe vida dentro de mim. De onde, que não de mim, você tirou tanta vitalidade? Foi do seu pai? Pai que não sabemos quem é? Pai, que não sabe de nós? De onde você conseguiu tanta vida? Qual é sua fonte, seu bastardo? Foi seu pai, que tirou de mim toda a alegria de estar viva, que deu a você tanta força pra viver? Meu filho, filho meu, ama a sua mãe como ela te ama e te odeia. Pedaço de mim, leva contigo a sua primeira vitória, leva seu parto sofrido como o troféu da penitência de se estar vivo. Vive e esteja sempre vivo. Hoje sua mãe, que nunca viveu, deixa a vida, e deixa para você, como legado, seus medos, pecados e essa carta mal escrita. Não tenha culpa, remorso, raiva ou rancor. Peço-te tampouco amor. Mas vive, meu filho, que a vida foi feita para você.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

De você...

De você
Ficaram apenas os maus momentos
Os bons, o tempo se encarregou de apagar
Ainda que com o meu esforço
Embora não sem dor

De você
Guardei cartas rasgadas e fotos desconfiguradas
Sílabas e rostos que se romperam com força
E pressa de quem quer esquecer
E não consegue

De você
Ficaram pétalas espalhadas de uma rosa murcha
Um bem-me-quer em eco no infinito
Sentimentalismos acorrentados em jaulas do tempo

De você
Ficaram lágrimas que demoraram a secar
Momentos verdadeiros que seriam eternizados
Se não estivesse escolhido, com racionalidade e amor-próprio,
Jogá-los na lata de lixo

E que o importante seja o que ainda não vivi.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Life goes on

H: A vida continua.
G: É por isso que eu estou aqui?
H: Você sabe porque eu venho aqui? Eu sento, eu vejo, eu imagino.
G: Hm, parece legal.
H: Imagina uma coisa dessas quebrar a perna. Basta um passo em falso e você se quebra na calçada.
G: Você não está falando sério...
H: Eu sou mau.
G: Pessoas más não dizem que são más.
H: Parece uma saída fácil. As pessoas podem fazer boas coisas se os instintos não são bons. Ou Deus não existe ou ele é inimaginavelmente cruel.
G: Eu não acredito nisso.
H: No que você acredita? Por que você acha que isso está acontecendo?
G: Eu não quero conversar sobre isso.
H: E daí, eu também não, que pena!
G: Eu não acho que tinha uma razão!
H: Aham, portanto, Deus existe, você foi estuprada, e sendo assim você quer manter seu bebê sem nenhuma razão.
G: Talvez ele esteja me testando.
H: Te machuca pra te ajudar, muito bom! Acho que é melhor que: “Ele te odeia”.
G: Você está tentando me convencer que não existe Deus, por que você faria uma coisa dessa??
H: Porque você está desperdiçando sua vida!
G: Eu estou fazendo o que eu acredito!
H: O que acredita não faz nenhum sentido.
G: Isso não está me fazendo bem.
H: Então eu não posso ajudá-la. Se você acredita em eternidade, então a vida é irrelevante. Assim como um inseto é irrelevante em comparação ao universo.
G: Se você não acredita em eternidade, então o que você faz aqui é irrelevante.
H: Suas ações nessa vida é o que importa.
G: Então nada importa. Não há uma conseqüência final?? Eu não poderia viver assim.
H: Então você precisa saber se o cara que fez isso a você será punido?
G: Eu preciso saber que pra tudo nesse mundo existe um significado. Eu preciso desse conforto.
H: É, então é isso.. Você se sente bem assim, se sente aquecida por dentro?
G: Acredito que sim.

Diálogo de “House M.D.”, do capítulo 12 da terceira temporada.



Então, Deus existe? Nosso destino está escrito desde nosso nascimento? Existe vida após a morte? Reencarnação?

Eu não acredito em eternidade, nem em Deus, mas há momentos em que fica difícil não acreditar em força superior. A vida é aqui e agora, e de certa forma acreditar nisso me faz aceitar o que eu não posso mudar e lutar pelo que eu posso; nem sempre, é claro. Não acredito em destino, mas também não acredito em coincidência. Não me peça pra explicar. Há coisas nesse mundo que são impassíveis de qualquer explicação; ou discussão. Cada um acredita no que “te aquece por dentro”.


Há dois anos eu tive um acidente de carro realmente grave. Estava voltando de BH, meu avô estava dirigindo, ele parou no meio da estrada, do nada, pediu pra minha tia dirigir e me mandou trocar de lugar com ele. Pedi pra não trocar, eu detestava sentar no meio, me dava náuseas, mas ele fingiu não escutar e me empurrou pra lá. Poucos minutos depois um caminhão entrou na nossa pista, o carro foi pro acostamento e, devido ao desnível, capotou e caiu ladeira abaixo. O motorista do caminhão não se deu ao trabalho de parar. O capô afundou onde meu avô estava e ele faleceu no mesmo instante. Segundo minha tia, eu ficava sentada no acostamento, perguntando o que tinha acontecido, falava que estava doendo, mas não lembro. Lembro apenas de estar no carro, e então num hospital muito precário em Três Marias. Por impulso, pedi um telefone emprestado, liguei pra minha mãe e falei que estava tudo bem, que tinha apenas quebrado o braço. Eu não sabia do meu avô, da minha outra tia, da minha avó, mas sabia que as coisas não estavam nada bem.
Desde criança eu sempre soube lidar bem com a dor, com sangue. Eu era uma dessas crianças, digamos, com bastante energia, que a vontade da mãe era amarrar na cama. Já tinha quebrado os dois braços, nariz, dedo e me machucado bastante, mas sabia que aquilo era diferente. Eu não conseguia mexer meu braço esquerdo, nem falar direito, meu rosto doía muito e meu pescoço sangrava sem parar. Não adiantaria falar nada, estava tudo bem, pronto.
Bem, a anestesia não durou muito tempo. Assim que eu desci da ambulância em Patos minha mãe desmaiou. Havia quebrado minha mão, o punho e a clavícula esquerda, a mandíbula em duas partes, fraturado significativamente a face esquerda e quebrado seis dentes da frente, além de 29 pontos levados no pescoço, sem anestesia.
Em dez dias eu estava na escola e, em um mês, na Festa do Milho. Não, não quis dizer que foi fácil. 30 dias com ferros dentro da sua gengiva amarrando a sua boca não é uma sensação nem um pouco agradável. Fome? Beba algo que passe pelo buraco dos dentes. Desde então nunca mais tomei iogurte, me dá calafrios quando vejo um.
Mas passava os dias sorrindo, com alegria, sem reclamar da dor ou ficar pensando se meu rosto um dia voltaria ao normal. Não era por estar viva. As pessoas tendiam a achar que eu deveria agradecer a Deus todos os dias, que eu deveria dar muito mais valor à minha vida. Faria sentido eu dar mais valor se eu fosse, sei lá, um usuário de drogas pesadas e tivesse provocado minha “quase morte”. Entretanto, não. Meus valores quanto ao mundo continuaram os mesmos, eu continuei a mesma. O que mudou foi o valor que eu dava às pessoas à minha volta. Não há nada como uma situação dessa pra ver quem está do seu lado ou não. Lembro de cada um que segurou a minha mão. Lembro de cada um que eu achei que seguraria. Há pessoas que sofreram mais por mim do que eu mesma poderia, e talvez fosse esse o motivo de levar tudo com mais leveza, sem drama.
O que eu quero dizer com tudo isso?
Que coisas acontecem.
Boas, ruins.
E não é porque elas acontecem que existe alguém as monitorando, ou que elas acontecem por uma razão. Não, acontecem porque o mundo gira, o tempo passa. O significado de cada coisa, cada mudança, depende de cada um. E o ser humano tem a tendência de tentar achar explicação em tudo, para tudo; de achar que pode entender o que realmente se passa com qualquer outro.

Mas como sempre diz uma amiga minha: “Cada um sabe a alegria e a dor que traz no coração.”

E só cada um sabe.
Há o indiscutível, sempre.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

À amiga que aniversaria!




"Amigo, pra mim, é isto: á pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacríficios. Ou-amigo- é que a gente seja, mas sem precisa saber o por quê é que é."


Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Dos substantivos concretos ou De Belo Horizonte


A chuva caia timida, quase querendo parar. E eu caminhava ainda mais timida, de cabeça baixa pela esquina dos aflitos, onde meliantes, indigentes, ciganos e pivetes vendiam a correntes de falso ouro, relogio despertador e a alma. Pela primeira vez eu parara para analisar o nome daquele lugar: Esquina dos Aflitos. Nome de melancolia quase poética. Os nomes das coisas e as coisas dos nomes. E para mim, naquele dia silencioso de carnaval, os substantivos sufocaram os verbos, que ate entao eu considerava a alma da lingua. Os substantivos é que são o nome das coisas. A alma de tudo. Justo eu, que nunca me atei a nomes, que os esquecia, quando nunca nem os ouvia. Na esquina dos aflitos senti de vontade de gritar o nome de tudo ao meu redor, numa agonia louca de guardar o mundo em cada palavra. Carros, fumaça, prédios, out-doors, cachorros, onibus, rodoviaria, sarjeta, asfalto, placas. O centro enfurecido da minha cidade estava muito calmo, escancarando diante dos meus olhos todos seus substantivos concretos, se urbanizando na minha frente com seu concreto gélido. Me abstrai naquele momento em parte viva e pulsante da cidade que não pára. Flutuei pela primeira vez, sobre suas ruas tão conhecidas pelas solas dos meus sapatos, meus sete pecados, minhas sete vidas todas ali se cruzando na Praça Sete, para que eu fosse também pedaço belo daquele Horizonte. Minha cidade de serras, de bares e de todos os substantivos de meu coração!

domingo, 3 de fevereiro de 2008

Linhas traçadas

Ela olha o calendário, pensando nos anos que se passaram e tenta entender o porquê. Acha engraçado notar que seus gostos mudaram, suas mãos envelheceram, o sorriso amoleceu e ela continuava ali, parada, como se não tivesse forças pra se mexer. Afinal, o que tanto a prendia?
Quem dera saber. Um cheiro, o olhar, o tato, o sorriso, o andar, a maneira como ele segurava sua xícara de café? Não sabia dizer. A aparência talvez? Não.
Quantas vezes olhou para ele e se perguntou o que tanto lhe interessava. Nunca soube ao certo.
Talvez fosse os olhos pequenos e levemente puxados, o sorriso aberto que saía sem controle quando ela o chamava por um apelido engraçado, as mãos macias, os dedos finos. Talvez fosse a maneira como ele conseguia agüentar com leveza as pessoas que ele não suportava.Talvez fossem suas manias. Deus, como ela adorava suas manias. Sabe, aquelas coisas inexplicáveis, como não pisar sobre as divisas dos ladrilhos, dormir apenas na beirada do travesseiro, ou apenas não conseguir comer salada com o restante da comida. Manias deixam as pessoas mais interessantes, dizia. As retiram daquele montante, deixando-as ímpar, e até bizarras, porque não. Ela tinha suas manias e as conservava com a mesma intensidade que mantinha suas memórias. Gostava do louco, intransigente, incomum. Bem, talvez fosse a ironia e a arrogância que ele insistentemente usava para cobrir uma insegurança que ele não podia admitir. Talvez fosse a facilidade que ele tinha de fazê-la perder os sentidos. Talvez fosse a voz, talvez o senso de humor. Talvez a maneira como segurava sua mão.
Hipóteses havia muitas, certezas, nenhuma. Já tinha passado por todas as fases; de depressão e auto-piedade a tentar achar outra pessoa, até que chegou à aceitação. Sabia que ele não seria seu, mas não lhe cabia mais nada a não ser esperar. E só de não ter que lutar contra si mesma já era uma imensa felicidade.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Menina


Les Saltimbanques, Pablo Picasso. 1905
Talvez seja pequena
que sou
o céu talvez, de grande,
seja belo - de impreciso -
e de mim, estar embaixo,
quiçá meu maior feito -
esse ser nada
mas breve
e o céu, longo,
azul e eterno
que decifrá-lo
seria falta de juízo.

Junho, 2007

Laís de Oliveira

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Cotidiano do mundo

Lágrimas escorrem pelo extremo de um olho. Saltam, fugindo de seus devidos canais, à medida que a vida se transforma em música e a música em vida; melancólica. Horas e minutos tornam-se tempo decorrido.
Uma jovem grita histericamente. Orgasmos múltiplos a invadem. O gozo, gosto da vida, devolve a ela a pureza e a sensibilidade das crianças. Sorri satisfeita, nenhum sentimento de culpa sobrepõe àquele súbito de prazer. Ela pensa, que talvez seja essa umas das únicas formas de encontrar o que chamam de Deus. E caminha, seus cabelos espalhados pela brisa mansa, por um mundo que compartilha com todas as suas intimidades refletidas, algumas conhecidas, nem todas exploradas.
Ofegante, uma mulher brada. Seu chamado ecoa pelos tetos de um hospital público e um médico atônito distribui funções a uma equipe desorganizada. Ela geme, resfolega, suspira. Tenta esboçar um sorriso de dor. De dentro de seu ventre um pequeno ser, banhado em um líquido viscoso, mostra o seu pequenino rosto a um mundo que não sabia existir. E chora indefinidamente.
Uma rosa, um sorriso; beijam-se. No banco de uma praça mal iluminada o amor floresce. É um germinar digno de apreciação, o que resulta em encantadoras reminiscências. Há espaço para o perdão, o entendimento e o desequilíbrio, que estrutura os corpos e remonta sorrisos: amor intransitivo.
Olhos famintos, sedentos de justiça e pão, rogam por um pouco de sensibilidade. Os que cruzam apressadamente a avenida não têm tempo para vasculhar os bolsos a procura de uma ou duas moedas para um indigente, que move os lábios num rezar silencioso de quem não se alimentou o dia todo.
Chocam-se. Um bêbado dirigia imprudentemente, um pai de família retornava de uma visita à amante. Ouve-se o estrondo, a vida acaba para um deles. E qual merece mais algum tempo nessa dimensão? Se a justiça se responsabilizasse pela vida, o que fosse bom seria poupado.
Uma garota pálida observa o que transcorre abaixo de sua janela, no décimo primeiro andar. Pensa. Sorri. Sobrevoa sonhos e ilusões; pequenas realidades. Ninguém sabe o que a faz estar ali às seis horas no entardecer de uma quinta-feira improdutiva. Ela continua, visualiza possibilidades, hipóteses, remói constantes arrependimentos. Sente o ar batendo na vidraça, um gosto de fuligem na boca, os cabelos molhados pingando no parapeito da janela. Observa as nuvens dando as mãos, as ondas que se quebram no mar ao longe, os carros que trafegam, a multidão que se aglomera. Ouve o buzinar dos automóveis, o rumor das conversas que se misturam e chegam a um décimo primeiro andar como verdadeira cacofonia. Ouve a vida urbana que se desenvolve abaixo de seus pés e ofuscam o canto dos pássaros. Entre um edifício e outro, aprecia o fim de tarde cor violeta que se mistura a um caramelo acinzentado. Abandona a janela, a existência morna das coisas, a distância entre a intenção e o procedimento, a fresta que olha o mundo. E retorna, sem gosto, ao grosso da vida.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Sem nome


Eu nua
Aqui falando alto, impropérios.
Aqui gritando enigmas
Mistérios meus
O que te intrigue, te interesse em mim.

Eu doida
Aqui gesticulando, teatral.
Aqui vez desengonço
Tal, vez dança
Pra que me olhe, te interesse em mim.

Eu tonta
Aqui girando em mim, tanto que caio.
A quê ocupei-me só de mim?
Ensaio em vão
Que tanto fez, que te interessa em mim?

2007
Laís de Oliveira

Le Cirque (1891) - Gorges Seurat

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Destino construído

Ele não sabia, mas era o único que a fazia perder o controle. Quando o via, ela prendia a respiração como que leva um susto e o mundo a sua volta se desconstruía por inteiro. Embora ele não soubesse, aquela era a mulher da sua vida. Quando aparecia, arrancava com os olhos tudo do lugar, era um vento forte que desmanchava as estruturas fixas que havia ali. Era a mulher que o fazia se sentir vulnerável... E vivo.
Entre um desencontro e outro, trocaram algumas palavras num dia frio, um dia qualquer. Ela sentiu que tinha dito tudo errado e colocado todas as palavras numa ordem estranha e desconexa. Ele, com o coração aos tropeços, acusou-se de ser um completo idiota e não conseguir juntar frases simples e banais quando, por um instante ímpar, olhou com desvio e medo para aqueles olhos.
Era noite, dia dos namorados, ambos lastimavam não ter um par para aquela ocasião. Não uma pessoa por quem dariam suas vidas, ou com quem certamente se casariam. Lamentavam não ter alguém por quem se preocupar e cuidar sem medo de ser excessivo, alguém em quem pudessem pensar ao ouvir uma música lenta ou um poema romântico, alguém que fosse uma boa companhia e desse uma história de amor, sem maiores adjetivos. Ele a levou em casa. Conversaram banalidades, o tempo, as aulas, as férias, a vida. Ela pensou em oferecer um chá, talvez uma cerveja, ou um vinho que não tinha, mas ficou receosa do que ele pudesse pensar. Não disse nada, nem mesmo agradeceu a companhia. Ele foi embora, tinha aula de francês no outro dia. Ela entrou em casa e foi escrever um poema. Ele, achando que estava indo longe demais com tanto platonismo fora de moda e ela, sofrendo por não identificar nenhum sinal de reciprocidade, escolheram, cada um com seu nervosismo latente e ansiedade, se esquecerem para sempre. Decidiram que deveriam procurar quem deles gostasse.
Encontraram amores desejáveis e invejáveis, mas nenhum que valesse as quatro letras proferidas com veemência e violência, nenhum que fizesse do mundo um inferno bom.

sábado, 19 de janeiro de 2008

Andorinha


"Andorinha lá fora está dizendo:- "Passei o dia à toa, à toa!"
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!Passei a vida à toa, à toa..."

(Andorinha, Manuel Bandeira em Libertinagem)

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E assim, continuo aqui, existindo, com as sobrancelhas por fazer, o cabelo seco e sem corte, as unhas lascadas com o esmalte vermelho descascado, a maquiagem borrada da noite passada. Prefiro dormir a acordar, prefiro chegar a sair.

Olho o relógio e espero que o tempo passe, que o tempo pare, que o tempo volte. Espero apenas para não deixar de esperar. Deixar de esperar seria me tornar ainda mais vazia. Mas a esperança por nada também não preenche; corrói, assim como a saudade do que nunca existiu.

E, pelo menos por enquanto, sonhar acordada é o meu passatempo preferido.

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Por B.G.

Ps: Férias intermináveis. ¬¬

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Lembrete

"PELA TARDE DE OUTONO onde o verão
Deixou rastos ainda, e a escuridão
É de fogo já baço no horizonte -
Por esta tarde onde indecisamente
O vento vago paira como insonte
De sua vinda morna e [ * ],
..."

Fernando Pessoa
5-10-1916


Pedaço de papel rasgado em uma página marcada de poesia de um livro que há muito era fechado. Recado no papel, anotação de contas, dívidas, lembretes: vontade de voltar e fazer tudo que, então, eu não podia esquecer. Vontade de lembrar de tudo que não posso esquecer. Ou do que não quero.
A página marcada era um pedaço de Fernando Pessoa, de um livro de poemas inacabados, coisa que ele deixou por fazer. A incidência me deixou análoga a Pessoa, sua obra por fazer, coisa antiga dobrada em silêncio, pedaço passado em silêncio. Meu cotidiano passado sem ver.
Pessoa era poeta e tinha em tudo seus sentidos.
Também eu tinha, no pedaço de papel, um pouco de mim em pessoa, um tanto de sentimentos que já tivera sentido. Tanto de coisa para não esquecer, qualquer dívida, recado e um rabisco que saiu de mim um dia, de um sentido que não volta. De uma sinceridade só de quem anota sem olhar, de quem rabisca sem sentido. Nostalgia de algo corriqueiro, vontade de sentir pedaço da gente durante o dia que passa, e vai e a gente esquece. Que mesmo se anota, vai, esquece. Saudade de sentir esses pedaços que inteiram algo mais que a gente lembra (e é tão pouco). Vontade de sentir algum se escrever agora. De rabisco sincero sem notar, coisa que fica por fazer. Vontade de lembrar de mim sem precisar agenda.
Lembrete por ser lido num pedaço de papel.
Por mim em pessoa no Pessoa inacabado.


Laís de Oliveira


[ * ] : Espaço em branco deixado pelo autor

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Sobre janeiro

"Janeiro chegou
a chuva não quer parar
(...)
Procuro os livros,
e a paz nos amigos
Mas o meu coração
não é bom dos ouvidos!"
Gardenais
Esses dias meio cinzentos e abafados de janeiro parecem insistir em nos mostrar que quando a gente se deixa acomodar tudo ao redor fica medíocre. Você deita na poltrona e não se preocupa nem mesmo em ajeitar a coluna. Não, é mais fácil assim, sujeito ridículo. Os dias começam ao meio-dia e não acabam, as horas se arrastam, o sol aparece tímido no meio da tarde (putz, ainda são quatro horas?). "O que são mais longos: os dias ou as noites?". Enquanto ainda é dia a resposta mais certa parece ser o dia, afinal o tempo úmido te sufoca na sua monotonia. Mas as insônias de janeiro são piores, afinal não existe nem com o que se preocupar. Sujeito desinteressante. Você até pensa que sua vida seria melhor se você se contentasse com um emprego medíocre (assim como você), com o cheque especial, ou uma viagem pra praia no Carnaval. Não, você é medíocre, desinteressante, monótono, e o que é pior, você não se encaixa. Você não é como os outros. As mangas das suas roupas estão sempre compridas demais, as barras das calças rotas, você vai ao cinema sozinho, bebe ou chora excessivamente, ou os dois, chega sempre atrasado, perde o ônibus (maldito sujeito, não tem nem habilitação!). Mas janeiro não te respeita, sujeito desajeitado, "cara estranho", como da banda que você insiste em gostar, janeiro te odeia, e insiste em te mostrar.Janeiro vem como um espelho que te mostra o quanto você é "destentado e feio". Janeiro definitivamente não te respeita. Não mesmo. Janeiro insiste em chegar. O sol de janeiro brilha pra todos, mas sobre sua cabeça janeiro é cinzento. São as chuvas de verão, você pensa. Verão pra quê? Praia cheia, fedor de cigarro, sol queimando, gente quase bonita. Não. Você sujeito chato, prefere a praia vazia, cheiro de brisa, noite estrelada e gente bonita de verdade, daquele jeito que só as pessoas bonitas de verdade sabem ser, sem produção, sem moldes. Janeiro pra quê? Você é daqueles sujeitinhos que preferem o céu de fim de tarde de maio, as flores de outubro (como as da Laís!), o sol brilhante e frio de julho, as luzes de dezembro, os ventos de agosto, a monotonia de março, o marasmo de novembro. Mas janeiro é muito eufórico. Em janeiro falta amor, você sabe, sujeito eternamente apaixonado, ninguém ama em janeiro. Janeiro tem bundas demais, festas demais, axe demais, enfim tudo é demais em janeiro, não sobra tempo pro amor. E você cantarola baixinho, sujeito controverso, a musiquinha de axé: "amor de praia não sobre serra". Sobe, você pensa. Mas eles não sabem o que é o amor, amor sobre serra, atravessa o gelo descalço ou o oceano a nado. Todos passam janeiro esperando o carnaval. E você passa por janeiro esperando que um dia essa euforia passe também por você. Quem sabe janeiro que vem, você, sujeito blasé, mude sua cara de paisagem e faça parte dessa grande festa. Não. Você sabe que não.


Foto achada na internet, como não tinha o nome do fotógrafo, não pude colocar os devidos créditos.

sábado, 5 de janeiro de 2008

"Feliiiiz ano noooovo... Adeeeeus ano veeelho.. Que tudo se realiiize..e badada"

É sempre assim; ano novo, promessas no reveillon, férias intermináveis, madrugadas na internet, tardes tediosas, domingão do faustão. A diferença é que antes sempre havia algo a se esperar, esperar por sorrir, chorar. Agora não. O ano começou sem planos, sem reservas, sem champagne. O que antes me matava por dentro, agora é apenas um ruído constante, que incomoda, mas que não rasga, não sangra. Apenas sufoca.
E eu gosto do que me põe no chão.





"I'm a hazard to myself
Don't let me get me
I'm my own worst enemy
It's bad when you annoy yourself"
(Pink)



Por B.G.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Au Lapin Agile

Esta esquina
Fica bem perto do nosso acaso
Pouco antes do vinho
Do seu copo raso
Da taça vazia
Três quadras e o tonto
O seu embaraço
O nosso tropeço
Desculpas risonhas, em frente
À direita, à esquerda e ao avesso
Os olhos vagueiam
E param, se cruzam...
Se fazem esquina.

Laís de Oliveira



Au Lapin Agile (1904), Picasso

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Desses dias depressivos

Hoje bastaria estar morta. Mas nem isso. Continuo morrendo em vida.Segurar o choro, adiar o gozo, fingir o riso. E não se render. A noite se esvai devagar e sonolenta, mas logo o dia chega atrevido, sem o menor respeito pela minha dor.


Burlando as regras do blog, postei dois textos hoje. Guts é imperdível, reflete bem meu sentimento ao fim de ano. E este é mais um desabafo, um modo de não sucumbir.

Guts

A
Aconselho ler este texto de estomago vazio.



GUTS” (Conto do livro "Haunted" de Chuck Palahniuk)

Inspire.
Inspire o máximo de ar que conseguir. Essa estória deve durar aproximadamente o tempo que você consegue segurar sua respiração, e um pouco mais. Então escute o mais rápido que puder.
Um amigo meu aos 13 anos ouviu falar sobre “fio-terra”. Isso é quando alguém enfia um consolo na bunda. Estimule a próstata o suficiente, e os rumores dizem que você pode ter orgasmos explosivos sem usar as mãos. Nessa idade, esse amigo é um pequeno maníaco sexual. Ele está sempre buscando uma melhor forma de gozar. Ele sai para comprar uma cenoura e lubrificante. Para conduzir uma pesquisa particular. Ele então imagina como seria a cena no caixa do supermercado, a solitária cenoura e o lubrificante percorrendo pela esteira o caminho até o atendente no caixa. Todos os clientes esperando na fila, observando. Todos vendo a grande noite que ele preparou.
Então, esse amigo compra leite, ovos, açúcar e uma cenoura, todos os ingredientes para um bolo de cenoura. E vaselina.
Como se ele fosse para casa enfiar um bolo de cenoura no rabo.
Em casa, ele corta a ponta da cenoura com um alicate. Ele a lubrifica e desce seu traseiro por ela. Então, nada. Nenhum orgasmo. Nada acontece, exceto pela dor.
Então, esse garoto, a mãe dele grita dizendo que é a hora da janta. Ela diz para descer, naquele momento.
Ele remove a cenoura e coloca a coisa pegajosa e imunda no meio das roupas sujas debaixo da cama.
Depois do jantar, ele procura pela cenoura, e não está mais lá. Todas as suas roupas sujas, enquanto ele jantava, foram recolhidas por sua mãe para lavá-las. Não havia como ela não encontrar a cenoura, cuidadosamente esculpida com uma faca da cozinha, ainda lustrosa de lubrificante e fedorenta.
Esse amigo meu, ele espera por meses na surdina, esperando que seus pais o confrontem. E eles nunca fazem isso. Nunca. Mesmo agora que ele cresceu, aquela cenoura invisível aparece em toda ceia de Natal, em toda festa de aniversário. Em toda caça de ovos de páscoa com seus filhos, os netos de seus pais, aquela cenoura fantasma paira por sobre todos eles. Isso é algo vergonhoso demais para dar um nome.
As pessoas na França possuem uma expressão: “sagacidade de escadas.” Em francês: esprit de l’escalier. Representa aquele momento em que você encontra a resposta, mas é tarde demais. Digamos que você está numa festa e alguém o insulta. Você precisa dizer algo. Então sob pressão, com todos olhando, você diz algo estúpido. Mas no momento em que sai da festa….
Enquanto você desce as escadas, então - mágica. Você pensa na coisa mais perfeita que poderia ter dito. A réplica mais avassaladora.
Esse é o espírito da escada.
O problema é que até mesmo os franceses não possuem uma expressão para as coisas estúpidas que você diz sob pressão. Essas coisas estúpidas e desesperadas que você pensa ou faz.
Alguns atos são baixos demais para receberem um nome. Baixos demais para serem discutidos.
Agora que me recordo, os especialistas em psicologia dos jovens, os conselheiros escolares, dizem que a maioria dos casos de suicídio adolescente eram garotos se estrangulando enquanto se masturbavam. Seus pais o encontravam, uma toalha enrolada em volta do pescoço, a toalha amarrada no suporte de cabides do armário, o garoto morto. Esperma por toda a parte. É claro que os pais limpavam tudo. Colocavam calças no garoto. Faziam parecer… melhor. Ao menos, intencional. Um caso comum de triste suicídio adolescente.
Outro amigo meu, um garoto da escola, seu irmão mais velho na Marinha dizia como os caras do Oriente Médio se masturbavam de forma diferente do que fazemos por aqui. Esse irmão tinha desembarcado num desses países cheios de camelos, na qual o mercado público vendia o que pareciam abridores de carta chiques. Cada uma dessas coisas é apenas um fino cabo de latão ou prata polida, do comprimento aproximado de sua mão, com uma grande ponta numa das extremidades, ou uma esfera de metal ou uma dessas empunhaduras como as de espadas. Esse irmão da Marinha dizia que os árabes ficavam de pau duro e inseriam esse cabo de metal dentro e por toda a extremidade de seus paus. Eles então batiam punheta com o cabo dentro, e isso os faziam gozar melhor. De forma mais intensa.
Esse irmão mais velho viajava pelo mundo, mandando frases em francês. Frases em russo. Dicas de punhetagem.
Depois disso, o irmão mais novo, um dia ele não aparece na escola. Naquela noite, ele liga pedindo para eu pegar seus deveres de casa pelas próximas semanas. Porque ele está no hospital.
Ele tem que compartilhar um quarto com velhos que estiveram operando as entranhas. Ele diz que todos compartilham a mesma televisão. Que a única coisa para dar privacidade é uma cortina. Seus pais não o vem visitar. No telefone, ele diz como os pais dele queriam matar o irmão mais velho da Marinha.
Pelo telefone, o garoto diz que, no dia anterior, ele estava meio chapado. Em casa, no seu quarto, ele deitou-se na cama. Ele estava acendendo uma vela e folheando algumas revistas pornográficas antigas, preparando-se para bater uma. Isso foi depois que ele recebeu as notícias de seu irmão marinheiro. Aquela dica de como os árabes se masturbam. O garoto olha ao redor procurando por algo que possa servir. Uma caneta é grande demais. Um lápis, grande demais e áspero. Mas escorrendo pelo canto da vela havia um fino filete de vela derretida que poderia servir. Com as pontas dos dedos, o garoto descola o filete da vela. Ele o enrola na palma de suas mãos. Longo, e liso, e fino.
Chapado e com tesão, ele enfia lá dentro, mais e mais fundo por dentro do canal urinário de seu pau. Com uma boa parte da cera ainda para fora, ele começa o trabalho.
Até mesmo nesse momento ele reconhece que esses árabes eram caras muito espertos. Eles reinventaram totalmente a punheta. Deitado totalmente na cama, as coisas estão ficando tão boas que o garoto nem observa a filete de cera. Ele está quase gozando quando percebe que a cera não está mais lá.
O fino filete de cera entrou. Bem lá no fundo. Tão fundo que ele nem consegue sentir a cera dentro de seu pau.
Das escadas, sua mãe grita dizendo que é a hora da janta. Ela diz para ele descer naquele momento. O garoto da cenoura e o garoto da cera eram pessoas diferentes, mas viviam basicamente a mesma vida.
Depois do jantar, as entranhas do garoto começam a doer. É cera, então ele imagina que ela vá derreter dentro dele e ele poderá mijar para fora. Agora suas costas doem. Seus rins. Ele não consegue ficar ereto corretamente.
O garoto falando pelo telefone do seu quarto de hospital, no fundo pode-se ouvir campainhas, pessoas gritando. Game shows.
Os raios-X mostram a verdade, algo longo e fino, dobrado dentro de sua bexiga. Esse longo e fino V dentro dele está coletando todos os minerais no seu mijo. Está ficando maior e mais expesso, coletando cristais de cálcio, está batendo lá dentro, rasgando a frágil parede interna de sua bexiga, bloqueando a urina. Seus rins estão cheios. O pouco que sai de seu pau é vermelho de sangue.
O garoto e seus pais, a família inteira, olhando aquela chapa de raio-X com o médico e as enfermeiras ali, um grande V de cera brilhando na chapa para todos verem, ele deve falar a verdade. Sobre o jeito que os árabes se masturbam. Sobre o que o seu irmãos mais velho da Marinha escreveu.
No telefone, nesse momento, ele começa a chorar.
Eles pagam pela operação na bexiga com o dinheiro da poupança para sua faculdade. Um erro estúpido, e agora ele nunca mais será um advogado.
Enfiando coisas dentro de você. Enfiando-se dentro de coisas. Uma vela no seu pau ou seu pescoço num nó, sabíamos que não poderia acabar em problemas.
O que me fez ter problemas, eu chamava de Pesca Submarina. Isso era bater punheta embaixo d’água, sentando no fundo da piscina dos meus pais. Pegando fôlego, eu afundava até o fundo da piscina e tirava meu calção. Eu sentava no fundo por dois, três, quatro minutos.
Só de bater punheta eu tinha conseguido uma enorme capacidade pulmonar. Se eu tivesse a casa só para mim, eu faria isso a tarde toda. Depois que eu gozava, meu esperma ficava boiando em grandes e gordas gotas.
Depois disso eram mais alguns mergulhos, para apanhar todas. Para pegar todas e colocá-las em uma toalha. Por isso chamava de Pesca Submarina. Mesmo com o cloro, havia a minha irmã para se preocupar. Ou, Cristo, minha mãe.
Esse era meu maior medo: minha irmã adolescente e virgem, pensando que estava ficando gorda e dando a luz a um bebê retardado de duas cabeças. As duas parecendo-se comigo. Eu, o pai e o tio. No fim, são as coisas nais quais você não se preocupa que te pegam.
A melhor parte da Pesca Submarina era o duto da bomba do filtro. A melhor parte era ficar pelado e sentar nela.
Como os franceses dizem, Quem não gosta de ter seu cú chupado? Mesmo assim, num minuto você é só um garoto batendo uma, e no outro nunca mais será um advogado.
Num minuto eu estou no fundo da piscina e o céu é um azul claro e ondulado, aparecendo através de dois metros e meio de água sobre minha cabeça. Silêncio total exceto pelas batidas do coração que escuto em meu ouvido. Meu calção amarelo-listrado preso em volta do meu pescoço por segurança, só em caso de algum amigo, um vizinho, alguém que apareça e pergunte porque faltei aos treinos de futebol. O constante chupar da saída de água me envolve enquanto delicio minha bunda magra e branquela naquela sensação.
Num momento eu tenho ar o suficiente e meu pau está na minha mão. Meus pais estão no trabalho e minha irmão no balé. Ninguém estará em casa por horas.
Minhas mãos começam a punhetar, e eu paro. Eu subo para pegar mais ar. Afundo e sento no fundo.
Faço isso de novo, e de novo.
Deve ser por isso que garotas querem sentar na sua cara. A sucção é como dar uma cagada que nunca acaba. Meu pau duro e meu cú sendo chupado, eu não preciso de mais ar. O bater do meu coração nos ouvidos, eu fico no fundo até as brilhantes estrelas de luz começarem a surgir nos meus olhos. Minhas pernas esticadas, a batata das pernas esfregando-se contra o fundo. Meus dedos do pé ficando azul, meus dedos ficando enrugados por estar tanto tempo na água.
E então acontece. As gotas gordas de gozo aparecem. É nesse momento que preciso de mais ar. Mas quando tento sair do fundo, não consigo. Não consigo colocar meus pés abaixo de mim. Minha bunda está presa.
Médicos de plantão de emergência podem confirmar que todo ano cerca de 150 pessoas ficam presas dessa forma, sugadas pelo duto do filtro de piscina. Fique com o cabelo preso, ou o traseiro, e você vai se afogar. Todo o ano, muita gente fica. A maioria na Flórida.
As pessoas simplesmente não falam sobre isso. Nem mesmo os franceses falam sobre tudo. Colocando um joelho no fundo, colocando um pé abaixo de mim, eu empurro contra o fundo. Estou saindo, não mais sentado no fundo da piscina, mas não estou chegando para fora da água também.
Ainda nadando, mexendo meus dois braços, eu devo estar na metade do caminho para a superfície mas não estou indo mais longe que isso. O bater do meu coração no meu ouvido fica mais alto e mais forte.
As brilhantes fagulhas de luz passam pelos meus olhos, e eu olho para trás… mas não faz sentido. Uma corda espessa, algum tipo de cobra, branco-azulada e cheia de veias, saiu do duto da piscina e está segurando minha bunda. Algumas das veias estão sangrando, sangue vermelho que aparenta ser preto debaixo da água, que sai por pequenos cortes na pálida pele da cobra. O sangue começa a sumir na água, e dentro da pele fina e branco-azulada da cobra é possível ver pedaços de alguma refeição semi-digerida.
Só há uma explicação. Algum horrível monstro marinho, uma serpente do mar, algo que nunca viu a luz do dia, estava se escondendo no fundo escuro do duto da piscina, só esperando para me comer.
Então… eu chuto a coisa, chuto a pele enrugada e escorregadia cheia de veias, e parece que mais está saindo do duto. Deve ser do tamanho da minha perna nesse momento, mas ainda segurando firme no meu cú. Com outro chute, estou a centímetros de conseguir respirar. Ainda sentido a cobra presa no meu traseiro, estou bem próximo de escapar.
Dentro da cobra, é possível ver milho e amendoins. E dá pra ver uma brilhante esfera laranja. É um daqueles tipos de vitamina que meu pai me força a tomar, para poder ganhar massa. Para conseguir a bolsa como jogador de futebol. Com ferro e ácidos graxos Ômega 3.
Ver essa pílula foi o que me salvou a vida.
Não é uma cobra. É meu intestino grosso e meu cólon sendo puxados para fora de mim. O que os médicos chamam de prolapso de reto. São minhas entranhas sendo sugadas pelo duto.
Os médicos de plantão de emergência podem confirmar que uma bomba de piscina pode puxar 300 litros de água por minuto. Isso corresponde a 180 quilos de pressão. O grande problema é que somos todos interconectados por dentro. Seu traseiro é apenas o término da sua boca. Se eu deixasse, a bomba continuaria a puxar minhas entranhas até que chegasse na minha língua. Imagine dar uma cagada de 180 quilos e você vai perceber como isso pode acontecer.
O que eu posso dizer é que suas entranhas não sentem tanta dor. Não da forma que sua pele sente dor. As coisas que você digere, os médicos chamam de matéria fecal. No meio disso tudo está o suco gástrico, com pedaços de milho, amendoins e ervilhas.
Essa sopa de sangue, milho, merda, esperma e amendoim flutua ao meu redor. Mesmo com minhas entranhas saindo pelo meu traseiro, eu tentando segurar o que restou, mesmo assim, minha vontade é de colocar meu calção de alguma forma.
Deus proíba que meus pais vejam meu pau.
Com uma mão seguro a saída do meu rabo, com a outra mão puxo o calção amarelo-listrado do meu pescoço. Mesmo assim, é impossível puxar de volta.
Se você quer sentir como seria tocar seus intestinos, compre um camisinha feita com intestino de carneiro. Pegue uma e desenrole. Encha de manteiga de amendoim. Lubrifique e coloque debaixo d’água. Então tente rasgá-la. Tente partir em duas. É firme e ao mesmo tempo macia. É tão escorregadia que não dá para segurar.
Uma camisinha dessas é feita do bom e velho intestino.
Você então vê contra o que eu lutava.
Se eu largo, sai tudo.
Se eu nado para a superfície, sai tudo.
Se eu não nadar, me afogo.
É escolher entre morrer agora, e morrer em um minuto.
O que meus pais vão encontrar depois do trabalho é um feto grande e pelado, todo curvado. Mergulhado na árgua turva da piscina de casa. Preso ao fundo por uma larga corda de veias e entranhas retorcidas. O oposto do garoto que se estrangula enquanto bate uma. Esse é o bebê que trouxeram para casa do hospital há 13 anos. Esse é o garoto que esperavam conseguir uma bolsa de jogador de futebol e eventualmente um mestrado. Que cuidaria deles quando estivessem velhinhos. Seus sonhos e esperanças. Flutuando aqui, pelado e morto. Em volta dele, gotas gordas de esperma.
Ou isso, ou meus pais me encontrariam enrolado numa toalha encharcada de sangue, morto entre a piscina e o telefone da cozinha, os restos destroçados das minhas entranhas para fora do meu calção amarelo-listrado.
Algo sobre o qual nem os franceses falam.
Aquele irmão mais velho na Marinha, ele ensinou uma outra expressão bacana. Uma expressão russa. Do jeito que nós falamos “Preciso disso como preciso de um buraco na cabeça…,” os russos dizem, “Preciso disso como preciso de dentes no meu cú……
Mne eto nado kak zuby v zadnitse.
Essas histórias de como animais presos em armadilhas roem a própria perna fora, bem, qualquer coiote poderá te confirmar que algumas mordidas são melhores que morrer.
Droga… mesmo se você for russo, um dia vai querer esses dentes.
Senão, o que você pode fazer é se curvar todo. Você coloca um cotovelo por baixo do joelho e puxa essa perna para o seu rosto. Você morde e rói seu próprio cú. Se você ficar sem ar você consegue roer qualquer coisa para poder respirar de novo.
Não é algo que seja bom contar a uma garota no primeiro encontro. Não se você espera por um beijinho de despedida. Se eu contasse como é o gosto, vocês não comeriam mais frutos do mar.
É difícil dizer o que enojaria mais meus pais: como entrei nessa situação, ou como me salvei. Depois do hospital, minha mãe dizia, “Você não sabia o que estava fazendo, querido. Você estava em choque.” E ela teve que aprender a cozinhar ovos pochê.
Todas aquelas pessoas enojadas ou sentindo pena de mim….
Precisava disso como precisaria de dentes no cú.
Hoje em dia, as pessoas sempre me dizem que eu sou magrinho demais. As pessoas em jantares ficam quietas ou bravas quando não como o cozido que fizeram. Cozidos podem me matar. Presuntadas. Qualquer coisa que fique mais que algumas horas dentro de mim, sai ainda como comida. Feijões caseiros ou atum, eu levanto e encontro aquilo intacto na privada.
Depois que você passa por uma lavagem estomacal super-radical como essa, você não digere carne tão bem. A maioria das pessoas tem um metro e meio de intestino grosso. Eu tenho sorte de ainda ter meus quinze centímetros. Então nunca consegui minha bolsa de jogador de futebol. Nunca consegui meu mestrado. Meus dois amigos, o da cera e o da cenoura, eles cresceram, ficaram grandes, mas eu nunca pesei mais do que pesava aos 13 anos.
Outro problema foi que meus pais pagaram muita grana naquela piscina. No fim meu pai teve que falar para o cara da limpeza da piscina que era um cachorro. O cachorro da família caiu e se afogou. O corpo sugado pelo duto. Mesmo depois que o cara da limpeza abriu o filtro e removeu um tubo pegajoso, um pedaço molhado de intestino com uma grande vitamina laranja dentro, mesmo assim meu pai dizia, “Aquela porra daquele cachorro era maluco.”
Mesmo do meu quarto no segundo andar, podia ouvir meu pai falar, “Não dava para deixar aquele cachorro sozinho por um segundo….”
E então a menstruação da minha irmã atrasou.
Mesmo depois que trocaram a água da piscina, depois que vendemos a casa e mudamos para outro estado, depois do aborto da minha irmã, mesmo depois de tudo isso meus pais nunca mencionaram mais isso novamente.
Nunca.
Essa é a nossa cenoura invisível.
Você. Agora você pode respirar.
Eu, ainda não.