terça-feira, 4 de março de 2008

Tem seis dias que eu não saio de casa. Em outros tempos eu criei o mundo e o homem nesse espaço quase hebdomadário. E ainda descansei no sétimo dia. Mas amanhã eu não irei descansar, mesmo porquê eu não criei merda nenhuma nesses dias. Só esse cheiro horrível. Eu devia abrir a janela, mas nem isso. De fora ia vir uma brisa irritante, trazendo consigo o excesso de vida do mundo lá fora. Tem uma creche na porta do meu prédio. Eu não suportaria ouvir vozes de crianças. Eu nem suportaria saber que ainda existem crianças. Então o jeito é agüentar o cheiro. Eu não sei dizer o que fede mais: os cinzeiros transbordam um cheiro inconfundível de nicotina dormida; da cozinha sai uma carniça de comida em estado de putrefação, ou será que quem está apodrecendo sou eu? Não. Eu sei que eu não estou apodrecendo ainda porque eu sinto saindo dos meus poros um perfume inebriante de álcool, deve ser resultado das muitas garrafas que agora eu vejo espalhadas, algumas quebradas, pelo chão. Álcool conserva, por isso eu sei que eu ainda não estou decompondo (mesmo porquê, qual bactéria iria comer minha carne insonssa?). Quando eu era criança meu pai matou um escorpião e colocou num potinho com álcool e eu coloquei em cima da minha prateleira, lá ficou por dias. Hoje eu me sinto como aquele escorpião, dentro dum pote com álcool, morto, como uma punição por ser venenoso, mesmo que eu nunca tenha picado ninguém. Eu deva contar que o bicho mais nocivo é o homem. Mas quem me ouviria? Fui eu quem criou o homem, no sexto dia eu acho. Não lembro mais das aulas de catecismo, mas foi no sexto, se não tiver sido, fica sendo, aposto que os escorpiões eu criei no primeiro dia. O que me consola é saber que amanhã é o sétimo dia. Sete um número cabalístico. Mas me consola por que? Eu vou continuar deitada nesse chão imundo olhando pras paredes mofadas por causa da infiltração e vou continuar pensando nas coisas mais mórbidas e kafkianas que um ser humano poderia pensar. Bom mesmo seria virar uma barata, eu já até tenho a maçã podre do pecado original cravada em minhas costas. Mas amanhã é o sétimo, e eu prometo não sucumbir.